A decisão de realizar uma cirurgia de redesignação sexual costuma ser o resultado de um longo processo de autoconhecimento, acompanhamento psicológico e tratamento médico.
Para pessoas trans, essa cirurgia representa muito mais do que uma transformação física: é a busca pela coerência entre corpo e identidade de gênero.
No entanto, mesmo sendo um procedimento necessário e respaldado por normas técnicas, muitas operadoras de planos de saúde ainda impõem barreiras à sua realização, negando cobertura sob justificativas abusivas ou desatualizadas.
A boa notícia é que avanços importantes vêm sendo conquistados ao longo dos anos, tornando essa realidade cada vez mais acessível.
O reconhecimento da cobertura obrigatória vem sendo reafirmado por decisões judiciais e regulamentações do setor.
Procedimentos como mastectomia para homens trans e redesignação genital para mulheres trans, por exemplo, estão no Rol de Procedimentos da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), o que garante seu custeio pelos planos de saúde.
Ainda assim, nem todos os procedimentos relacionados à redesignação sexual estão previstos na cobertura obrigatória, fazendo com que muitas pessoas tenham que recorrer a ações judiciais para viabilizar esse direito.
Então, o que fazer se o plano de saúde negar a cobertura da cirurgia de mudança de gênero?
Neste artigo, vamos explicar por que a cirurgia de redesignação sexual deve ser coberta pelos planos de saúde, mesmo quando nem todos os procedimentos constam no rol da ANS, e como agir caso seu plano negue esse direito.
Acompanhe as orientações e saiba como a Justiça tem possibilitado o acesso à cirurgia de mudança de gênero por meio de decisões liminares.
É chamado de transgênero o indivíduo que apresenta uma incongruência de gênero. Ou seja, é a pessoa que nasce com um sexo biológico, mas se identifica como do sexo oposto.
Em muitos casos, o transgênero faz acompanhamento psicológico, psiquiátrico e médico, realiza tratamento hormonal e, até mesmo, a cirurgia de redesignação sexual para modificar a aparência de acordo com o sexo com o qual se identifica.
Não se trata de um procedimento meramente estético, mas sim um procedimento reparador de uma condição que traz intenso sofrimento psicológico.
A cirurgia de redesignação sexual - que também pode ser conhecida por outros nomes, como processo transexualizador, transgenitalização e cirurgia de mudança de sexo - engloba uma série de procedimentos clínicos e cirúrgicos com o objetivo de alterar as características sexuais fisiológicas do indivíduo.
Além da terapia hormonal (para dar ao organismo características do sexo biológico oposto), a cirurgia pode englobar a remoção do pênis, a colocação de próteses mamárias, a remoção do útero, ovário e mamas e a construção de um novo órgão genital.
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A cirurgia de redesignação sexual pode ocorrer em duas direções: masculino para feminino (MtF) e feminino para masculino (FtM).
Cada abordagem envolve um conjunto de procedimentos específicos, adaptados às necessidades individuais do paciente e às recomendações médicas.
A transgenitalização de masculino para feminino inclui uma série de intervenções cirúrgicas que visam modificar características sexuais masculinas para femininas, respeitando a identidade de gênero da paciente.
Alguns dos procedimentos mais comuns incluem:
A redesignação de feminino para masculino também envolve um conjunto de cirurgias e tratamentos específicos para masculinização.
Entre os procedimentos mais comuns estão:
Esses procedimentos podem ser realizados isoladamente ou em estágios, dependendo da abordagem médica e do desejo do paciente.
O acompanhamento psicológico e psiquiátrico antes e depois das cirurgias é fundamental para garantir o bem-estar emocional durante todo o processo de transição.
Alguns desses procedimentos, como a amputação total de membro e a cirurgia de neovagina, estão previstos no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). Outros, como a clitoroplastia, não.
Por esse motivo, muitos planos de saúde se recusam a custear a redesignação sexual alegando que o procedimento prescrito não faz parte do rol de cobertura obrigatória ou que o paciente não preenche às Diretrizes de Utilização Técnica da ANS.
Infelizmente, mesmo com a inclusão dos procedimentos no rol da ANS, muitas operadoras continuam ignorando a obrigatoriedade de cobertura da cirurgia de mudança de gênero.
Em alguns casos, alegam que apenas parte do procedimento está listado, dificultando a realização da cirurgia completa. Em outros, a negativa parte de argumentos preconceituosos.
A boa notícia é que o poder judiciário tem sido acionado e, independentemente da ideologia do juiz responsável pelo caso, as decisões geralmente garantem o direito ao tratamento.
Inclusive, procedimentos como a cirurgia de feminilização facial também são respaldados pela Justiça quando há indicação médica.
Sim. O plano de saúde tem o dever de arcar com os custos da cirurgia de transgenitalização, que é indicada pelo médico após a realização do tratamento hormonal e acompanhamento psicológico do paciente.
Diversas decisões judiciais entendem que o rol da ANS representa apenas a referência de cobertura prioritária, e não tudo o que os planos de saúde são obrigados a custear.
Dessa forma, o simples fato de um procedimento não estar listado no rol não justifica a negativa de cobertura.
Existe, inclusive, a possibilidade de se obter rapidamente a cobertura do procedimento indicado pelo plano, via liminar.
Embora a liminar seja uma decisão provisória, é um importante recurso jurídico para casos urgentes, nos quais o paciente corre riscos em não realizar o tratamento proposto.
Como a Justiça se posiciona e como obter a cobertura?
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A Justiça tem desconsiderado o fato de que o rol da ANS não prevê a cobertura de muitos dos procedimentos e determinado que o plano de saúde pague a cirurgia, incluindo honorários médicos caso não haja profissional na rede credenciada.
Confira um exemplo, a seguir:
APELAÇÃO – PLANO DE SAÚDE – Ação de obrigação de fazer referente à cirurgia de mastectomia radical e reconstrução cutânea (remoção das mamas) e indenização por danos morais – Autor transexual que busca harmonizar sua aparência física com sua identidade psíquica – Negativa ao argumento de se tratar de cirurgia estritamente estética e não constante do rol da ANS – Abusividade – Súmulas nº 96 e 102, TJSP – Diagnóstico de Transexualismo (CID F64.0) – Prescrição médica – Dignidade da pessoa humana - Descompasso entre classificação biológica do sexo e seu gênero como causa de inúmeros constrangimentos e possível discriminação – Inquestionável proteção da saúde mental do autor – Direitos fundamentais – Processo transexualizador previsto no SUS demonstrou o afastamento da noção estética das intervenções relacionadas - Abusividade da negativa de cobertura por não estar previsto no rol da ANS – Súmulas nº 96 e 102, TJSP – Obrigação de custeio – Danos morais cabíveis – Caráter excepcional – Autor em véspera de ser convocado pela Junta Militar após alistamento obrigatório, devido à sua condição de homem transexual – Aflição psicológica decorrente dos possíveis constrangimentos na realização de perícia médica junto ao Exército, em situação de descompasso entre a aparência e o gênero reconhecido – Verba fixada em R$7.000,00 – Razoabilidade – Sentença de procedência mantida - NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.
O entendimento frequente é que o rol da ANS, atualizado apenas de dois em dois anos, não contempla diversos procedimentos e tratamentos médicos. Sendo assim, o simples fato de o procedimento prescrito não constar na lista não impede a cobertura.
Até porque a Lei dos Planos de Saúde permite superar o rol da ANS sempre que a recomendação médica estiver em acordo com a Medicina Baseada em Evidências.
Portanto, mesmo fora do rol da ANS, você pode obter a cobertura da cirurgia de redesignação sexual e de todos os procedimentos envolvidos.
Quando há uma negativa por parte do plano de saúde, recorrer à Justiça é uma alternativa viável. O processo pode ser realizado de maneira totalmente eletrônica, tornando mais ágil a obtenção do direito ao tratamento.
Após receber a recusa formal do plano de saúde, o paciente pode procurar um advogado especialista em planos de saúde, que poderá manejar uma ação judicial para buscar a cobertura do procedimento.
O médico deve apresentar um relatório médico completo e detalhado que contenha todos os códigos relacionados aos procedimentos, mesmo os que não constam no rol da ANS, que serão realizados durante a cirurgia de redesignação sexual.
A legislação brasileira estabelece que tratamentos que estejam de acordo com a ciência devem ser cobertos pelos planos de saúde. Assim, ter uma indicação médica sólida e uma recomendação técnica bem estruturada são fatores fundamentais para a defesa do direito ao procedimento.
Em alguns casos, é possível solicitar uma liminar, uma ordem judicial que pode determinar a realização imediata da cirurgia. Mesmo que a urgência do procedimento seja contestada, isso não deve afetar o direito final à cobertura.
Como fica a carência nesses casos?
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É importante destacar que, nos casos em que a incongruência de gênero for declarada como preexistente no momento da assinatura do contrato, o plano de saúde poderá impor carência de 24 meses para liberar a cobertura da cirurgia.
É seu direito realizar a cirurgia de mudança de sexo pelo plano de saúde. Ainda que a cobertura tenha sido negada com base no rol e nas Diretrizes da ANS, ou sob a alegação de ser um “procedimento estético”, saiba que a Justiça está ao seu lado.
Fale com um advogado especialista em Direito da Saúde que possa orientá-lo sobre o tema e tire todas as suas dúvidas.
Uma questão que gera dúvidas é a escolha do profissional e do hospital para a realização da cirurgia de mudança de gênero.
Embora muitos pacientes prefiram operar com médicos específicos, não é possível exigir que um profissional particular realize o procedimento e que o plano de saúde cubra integralmente os custos sem justificativa.
Caso o plano de saúde não tenha profissionais ou hospitais credenciados para a realização da cirurgia, é possível buscar um atendimento fora da rede credenciada.
No entanto, isso deve ser feito de acordo com as regras estabelecidas pela Resolução Normativa nº 566 da ANS.
Diante dos desafios impostos pelas operadoras de saúde, buscar informação e contar com um advogado experiente na área são fatores fundamentais para garantir o direito ao procedimento.
Advogados especialistas em Direito da Saúde podem oferecer o suporte necessário para interpretar corretamente as normas e contestar negativas injustificadas.
Além disso, compartilhar informações sobre esse direito é essencial para ajudar outras pessoas que enfrentam o mesmo desafio.
Você tem direito à cirurgia de redesignação sexual pelo plano de saúde, seja para realizar a cirurgia de mudança de gênero de masculino para feminino ou de feminino para masculino.
E, mesmo que a cobertura seja negada, a Justiça tem dado decisões favoráveis em diversos casos. Consulte um advogado especialista em planos de saúde para avaliar sua situação e lutar por seus direitos.
Nunca se pode afirmar que se trata de “causa ganha”. E, para saber as reais possibilidades de sucesso de sua ação, é fundamental conversar com um advogado especialista em Direito à Saúde para avaliar todas as particularidades do seu caso, pois há diversas variáveis que podem influir no resultado da ação, por isso, é necessário uma análise profissional e cuidadosa.
O fato de existirem decisões favoráveis em ações semelhantes mostra que há chances de sucesso, mas apenas a análise concreta do seu caso por um advogado pode revelar as chances de seu processo. Portanto, converse sempre com um especialista no tema.
Escrito por:
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Elton Fernandes, advogado especialista em ações contra planos de saúde, professor de pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar da USP de Ribeirão Preto, da Escola Paulista de Direito (EPD) e do Instituto Luiz Mário Moutinho, em Recife, professor do Curso de Especialização em Medicina Legal e Perícia Médica da Faculdade de Medicina da USP e autor do livro "Manual de Direito da Saúde Suplementar: direito material e processual em ações contra planos de saúde". |